A transição energética surge frequentemente associada a instrumentos centralizados de promoção da produção de energia elétrica de fontes renováveis tais como grandes centrais solares e eólicas ou projetos de hidrogénio verde – sendo exemplo disso mesmo os célebres procedimentos concorrenciais para atribuição de reserva de capacidade de injeção de energia elétrica na rede, vulgos leilões de energia solar.

Contudo, a transição energética não se esgota em megaprojetos, que necessitam inevitavelmente de avultados investimentos, havendo também espaço, numa lógica de complementaridade, é certo, para a chamada produção descentralizada de eletricidade, em particular para o autoconsumo de energia elétrica através das unidades de produção para autoconsumo (UPAC).

Confirmando esta ideia, o Plano Nacional Energia e Clima 2021-2030 (PNEC 2030) prevê uma evolução da capacidade instalada no que respeita ao solar fotovoltaico, no horizonte 2030, para efeitos de cumprimento dos objetivos estabelecidos para o setor eletroprodutor, de 9 GW, desagregando-se este valor por 7 GW de produção centralizada e 2 GW de produção descentralizada. O objetivo é, portanto, ambicioso: quadruplicar a atual capacidade instalada de produção descentralizada (cerca de 0,5 GW).

Neste sentido, tendo em vista estimular o autoconsumo de energia elétrica, o Governo aprovou o Decreto-Lei n.º 162/2019, de 25 de outubro, que para além de estabelecer as regras do autoconsumo individual, veio, inovatoriamente, legislar sobre o autoconsumo coletivo e a constituição de comunidades de energia renovável (CER).

A verdade é que, como sempre, uma coisa é a law in books e outra coisa é a law in action. Por conseguinte, o autoconsumo coletivo e as CER são ainda uma miragem para os promotores que se deparam com diversas dificuldades suscitadas tanto pela indefinição dos conceitos como pela lacunar regulamentação destas novas realidades.

Adicionalmente, a bankability destes projetos tem-se afigurado complexa, designadamente atendendo à aparente impossibilidade de tomada de controlo dos projetos por parte das entidades financiadoras – sendo que, naturalmente, sem financiamento assegurado a maioria dos projetos não conseguirá ver a luz do dia.

Por outro lado, como o sol não brilha todo o tempo e, por vezes, brilha “demasiado”, é preciso criar condições de capacidade de receção dos excedentes gerados pelas UPAC na rede, por exemplo através da alocação de alguma da capacidade disponível para a produção descentralizada em detrimento de colocar toda a capacidade disponível nos leilões de energia solar que, até agora, se têm destinado exclusivamente a projetos de média e grande dimensão.

Noutra perspetiva, existe também a necessidade de desburocratizar o licenciamento destes projetos, automatizando e uniformizando os procedimentos e reforçando a capacidade de resposta dos serviços da Administração Pública.

Um exemplo muito conhecido de todos os que estão neste setor diz respeito ao licenciamento da construção de uma UPAC num parque de estacionamento em que cada autarquia segue a regra “cada cabeça, sua sentença” fazendo a sua própria interpretação quanto ao procedimento a seguir e as taxas a aplicar.

Não ignoro, nem menosprezo, no entanto, o facto de ser efetivamente difícil definir regras – que idealmente se quereriam estáveis – num setor em permanente e rápida evolução pelo que a flexibilidade, por um lado, e a precisão e clareza dos conceitos, por outro, deveriam estar bem presentes para que tanto os promotores como as entidades licenciadoras, incluindo todos os intervenientes do lado da Administração Pública, central e local, possam aplicá-los de modo uniforme e tendencialmente célere.

Contudo, aqui chegados, sem prejuízo de algumas arestas por limar, importa dizer que apesar dos pesares – i.e. algumas dificuldades práticas, que em menor ou maior tempo, menor ou maior custo e menor ou maior paciência, se conseguem (quase) sempre ultrapassar – a verdade é que a ideia a reter é que o autoconsumo é uma oportunidade única para cidadãos e empresas participarem ativamente na transição energética.

Exemplo disto mesmo é que existem atualmente propostas no mercado de alguns promotores que passam por fazer a totalidade do investimento, instalação, operação e manutenção das UPAC, beneficiando os seus clientes (indústrias, hotéis, grandes superfícies comerciais, etc.) com uma imediata redução da sua fatura energética, sem qualquer custo do lado do investimento, permitindo assim libertar recursos para a atividade core destas empresas.

As UPAC poderão, também, no futuro, com o advento da produção de hidrogénio verde, vir a desempenhar um papel importante no fornecimento da eletricidade necessária para proceder à eletrólise da água, designadamente instalando-as junto dos estabelecimentos industriais dos grandes consumidores de gás.

Em conclusão, o autoconsumo de eletricidade constitui, hoje, um inegável veículo de participação de cada um de nós na transição energética, inserindo-se num quadro geral de mudança de paradigma do setor da energia em que o consumidor passivo dá lugar ao consumidor-produtor (prosumer) que passa a ter um papel ativo e central na produção e gestão das suas necessidades energéticas.

 

Autor: Duarte Lacerda (Associado de Energia & Alterações Climáticas da CMS Rui Pena & Arnaut)

Fonte: Capital Verde